Um dos retratos mais angustiantes do vício em substâncias químicas foi feito em “A Consciência de Zeno”, do escritor italiano Italo Svevo. No romance, o protagonista luta, inutilmente, para se livrar do hábito de fumar, sempre às voltas com o último cigarro: “Acendi um cigarro e logo me senti relevado da inquietude, apesar de a febre talvez aumentar e de sentir a cada tragada que as amígdalas me ardiam como se tocadas por um tição. Fumei o cigarro até o fim com a determinação de quem cumpre uma promessa”.
A época em que este clássico da literatura moderna foi publicado, início dos anos 1920, marcou também a ascensão da indústria do cigarro. Nas décadas seguintes, uma publicidade agressiva faria aumentar o número de dependentes no mundo, tornando o tabaco a droga mais consumida e mais mortal em toda a história da humanidade.
No ano passado, 6 milhões de pessoas morreram em todo o mundo de doenças relacionadas ao tabagismo (número similar ao de judeus assassinados noholocausto nazista). Desse total de mortes, 80% ocorreram em países pobres ou em desenvolvimento, onde ainda não existe legislação específica restringindo a produção, comercialização e uso do tabaco. Neste ritmo, estima-se que um bilhão de pessoas morram durante o século 21 devido ao fumo ou exposição à fumaça de cigarro.
Os dados fazem parte da quarta edição do Atlas do Tabaco, lançada em 21 de março durante a 15a Conferência Mundial Tabaco ou Saúde, realizada em Cingapura.
De acordo com o relatório, a indústria do tabaco lucrou quase US$ 6.000 para cada morte causada pelo fumo no ano de 2010. Neste ano, a renda das seis maiores fábricas de cigarro do planeta foi de US$ 35 bilhões, o que corresponde aos lucros combinados da Coca-Cola, da Microsoft e do McDonald’s no mesmo ano.
É um dos negócios mais lucrativos do planeta. Aproximadamente 20% da população adulta mundial fuma cigarros. Originário das Américas, o tabaco foi levado para a Europa no século 15 e, nos séculos seguintes, tornou-se um dos pilares da economia imperialista.
Já no século 19 o costume de fumar deixou os salões da aristocracia e se popularizou, na Europa e na América. Nas primeiras décadas do século 20 surgiram a indústria do tabaco e o marketing em torno do produto, tendo como público-alvo as mulheres e, mais tarde, os adolescentes.
As propagandas associavam o fumo a hábitos saudáveis e jovialidade, sendo comum atletas, artistas e até médicos anunciarem o produto em rádio, TV e jornais. Os estúdios de Hollywood recebiam verbas para que seus astros fumassem em filmes. Mais do que uma “pausa” na hora do café, o cigarro se tornou parte da cultura e sociedade moderna.
Sabor chocolate
Nos anos 1970 foram dados os primeiros alarmes da comunidade médica sobre os efeitos nocivos do cigarro, não obstante os esforços do setor empresarial para tentar impedir que o público fosse informado dos males do vício. Hoje, o tabagismo é apontado como causa da morte de 15% dos homens e 7% das mulheres. Além disso, o fumo é considerado fator de risco de quatro causas de morte – câncer, doenças cardíacas, diabetes e doenças do aparelho respiratório – que respondem por 63% dos óbitos no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS).
Mas, diferente de outros agentes cancerígenos, o fumo pode ser prevenido com políticas públicas. Elas incluem taxação do produto, banimento da publicidade, restrição de fumo em locais fechados e campanhas de saúde. A epidemia do tabaco, para os Estados, se traduz em prejuízos nas áreas de Saúde e Previdência Social, o que levou os governos a deixarem de compactuar com os fabricantes.
Uma iniciativa mais abrangente foi a assinatura da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), um acordo internacional que estabelece compromissos de criação de políticas de controle do tabaco e cooperação entre governos. O tratado entrou em vigor em 2005, e possui 174 países membros e 168 signatários, incluindo o Brasil.
Segundo país a assinar o acordo, o Brasil possui leis que o colocam na vanguarda da luta contra o tabagismo. No final dos anos 1980, os fabricantes foram obrigados a estampar nas embalagens a frase “O Ministério da Saúde adverte: fumar é prejudicial à saúde”. A proibição da publicidade veio em 2000 e, a partir de 2008, os maços de cigarro passaram a trazer imagens provocativas, com o objetivo de chocar o fumante.
No ano passado, uma lei federal proibiu o fumo em locais fechados, banindo o cigarro de espaços como restaurantes, casas noturnas e cinemas. Na mais recente ofensiva contra a indústria, no dia 13 de março, o governo proibiu o uso de aditivos que dão sabor aos cigarros (menta, chocolate, canela e fruta). Cigarros desse tipo representam 22% do total vendido no país e fazem parte de uma estratégia para tornar o produto mais atrativo para crianças e adolescentes.
Também foram proibidas substâncias que potencializam no organismo a ação da nicotina – o princípio ativo do tabaco cujo uso causa dependência. As empresas têm até dois anos para se adaptarem às normas.
Estima-se que, no Brasil, 23,9% da população seja fumante, e que 200 mil mortes por ano sejam decorrentes do hábito de fumar. Entre as vítimas mais famosas do cigarro está o comediante Chico Anysio, morto em 23 de março depois de sofrer anos de enfisema pulmonar e doenças respiratórias causadas pelo fumo.
Em entrevista, a viúva do humorista disse que pretende criar um instituto antitabagista, somando-se, assim, a outras campanhas da sociedade civil, entre elas uma da própria Rede Globo, que exibiu no programa Fantástico a série “Brasil sem Cigarro”, apresentada pelo médico Dráuzio Varella. Décadas após o início do “holocausto silencioso” promovido por empresas e governos, Zeno, personagem do romance de Svevo, teria hoje mais informações e apoio médico para largar o vício.
José Renato Salatiel*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
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